Um relato simpático e carinhoso de Euclides de Almeida Júnior, sobre tipos populares que são considerados "sem juízo". Que ninguém interprete mal, o texto é uma homenagem a esses homens e mulheres do povo muitas vezes ridicularizados pelos que se acham normais.
Uma vez eu assisti na internet um vídeo de uma aula
espetáculo do Mestre Ariano Suassuna em que ele dizia que gostava muito de doido e de mentiroso. Explicou, inclusive, que um dos seus personagens mais
conhecidos, o Chicó, do Auto da Compadecida, era inspirado em um
vaqueiro do seu pai, que sempre contava as suas mentiras.
Fiquei aliviado, ao saber que não era apenas eu que
gostava de dar atenção e ouvir as mentiras cabeludas e os delírios desse povo.
Se um dos maiores ícones da cultura nordestina e brasileira dá valor a essa
pessoas, quem sou eu para não lhes dar importância?
Como acordo cedo todos os dias, logo às seis da
manhã já estou com meu comércio aberto. Muitas vezes antes de abrir Tonho
Lagartão, um sem juízo, já me espera para suas pequenas compras e também, na
imaginação dele, pra ver se o filmaram e o colocaram na internet. Muitas vezes
se zanga por não ver o seu rosto na tela do computador. Ele de uns tempos pra
cá, botou na cabeça que todo mundo quer filmar ele para postar na rede. Não
pode ver ninguém com celular na mão que corre pra longe. Acho que “medo e
carreira maior” só se falar em banho. Depois de acalmar ou agitar Lagartão,
dependendo do humor, começam a chegar os outros clientes, principalmente para
comprar cigarro.
No decorrer do dia, além de pessoas para fazer
compras, muitos vêm para jogar conversa fora. Além dos frequentadores normais,
que têm juízo (penso eu), gostam de dar uma paradinha no meu comércio alguns
amigos e uma tuia de doido. O amigo Rosca Fina dizia que meu mercado e a
casa da minha mãe, que é vizinha, parecia mais um hospício, por que nunca viu
um lugar pra juntar tanto doido.
Minha mulher às vezes fala brincando que o mais sem
juízo de todos sou eu, por alimentar as fantasias deles. Às vezes acho que ela
tem razão. Desde que o mundo é mundo que existe gente assim em todo lugar.
Capoeiras não é diferente, e gente com algum tipo de loucura tem um bocado. Mas
diferente das cidades grandes, onde nem se tem conhecimento dos seus doidos, e
eles assim como os muito pobres são os invisíveis da sociedade, no interior
eles são conhecidos, convivem e interagem com a população. Muitos viram
folclore e até celebridades.
Tomei conhecimento de que antes de eu nascer
existia por aqui uma doida morena gorda de nome Caetana, por ser de Caetés, que
na época se chamava Caetano. Manoel Calistrato, que a meninada o apelidara de
“Mestre de Açúcar Preto”. Era gritar e correr. Agostinho Fubá era baixinho,
branco e só meio tolo, e gostava de cantar: -“Baibuleta não é ave...”
Tinha
também Dominice, ou Firmina, como também era chamada, que essa sim fazia medo à
molecada. Ela vivia catando pontas de cigarro e palitos de fósforo usados para
enfiar nos cabelos e entre os dedos dos pés. Era uma coisa macabra. Zé Doido
era o fofoqueiro. Não podia ouvir nada que saia subindo e descendo rua contando
a novidade. Muitas vezes os gaiatos contavam pra ele mentiras absurdas só pra
ver a confusão. Da minha infância eu me lembro de João doido, que vivia com uma
mão tapando um ouvido, e a outra fechada próxima a boca, como se fosse um
microfone. Ele além de viciado no jogo do bicho tinha em mente que era um
locutor de carro de som.
Mais até do que hoje, antigamente por essas bandas
andavam algumas Veraneios cheias de
alto falantes fazendo todo tipo de propaganda nos eventos da cidade. Uma das
principais era a da Cachaça Pitu, que com seu potente equipamento, bradava o slogan
da empresa, que João Doido erradamente repetia: -“Pitú, o apuritivo do
povo.”
João morreu atropelado não se sabe por quem na PE
193, estrada que leva a Garanhuns. Lembro-me também de Chico Doido, que botava
água de ganho em seu galão de latas de querosene. Ele tinha um irmão sapateiro
de nome Ciço da graxa e morava perto da Cacimba do Pau. Quando estava
atacado corria na rua, e batendo uma lata na outra gritava: -“Chico doido,
Chico doido! Mané Reino, Mané Reino!” Numa alusão ao prefeito da
época, Manoel Reino.
Tem um dito popular que prega: “Menino não é
gente”! É a coisa mais certa do mundo. Eu me juntava com alguns moleques de
idade parecida, e a nossa diversão era tirar o chapéu de Chico Doido, só pra
levar uma carreira. Era como se fosse uma prova de coragem pegar o chapéu de
Chico, correr e depois deixar num lugar pra ele pegar. Logo em seguida quem
pegava o chapéu de Chico Doido voltava pra perto dele, pois ele não lembrava
quem tinha pego.
Naquele tempo também tinha Isaías Costa, o “Zaía”,
que andava com um saco nas costas, segundo ele era pra carregar menino. O Zaías
bebia muito, e não sei se por isso falava com certa dificuldade. Dizia que
tinha ficado assim por zombar de Padre Cícero.
Outro doido famoso era Orestes. Esse sim doido de
pedra. Mal humorado ao extremo, vivia resmungando uma imensa lista de
palavrões, ao mendigar pelas ruas de Capoeiras. Maltrapilho, tinha a cara de
grude e de mau; andava parecendo um galo guerrinha quando quer briga. Orestes
sempre andava de “asa aberta” e tinha duas ou três pedras na mão. Era só chamar
um dos seus muitos apelidos que as pedras voavam tentando acertar quem gritava.
Penico sem fundo, ladrão de jarro de
cemitério e jagunço, eram os nomes que faziam Orestes sair do sério.
Andava também por aqui um doido de Salobro, que não
recordo do nome, mas na sua imaginação ele era dono de um caminhão. Um pedaço
de borracha redondo, cortado de um pneu ou uma tampa de panela era a direção do
seu veículo imaginário. Ele corria pelas ruas fazendo o barulho do motor,
buzina e freio com a boca. Pó de Arroz, que em Capoeiras é Luiz, mas em Caetés
é Severo, é outro sem juízo das antigas. Com ele só pararam um pouco de mexer
depois que ele furou o olho de um menino com um espeto de pau. Dizem que quem o
apelidou foi outra pessoa, não se sabe ao certo. Outro que passou um tempo aqui
era quase uma autoridade, pois se dizia prefeito de Saloá.
João Prefeito andava de paletó azul marinho e
gravata. Chapéu de cowboy, óculos escuros, chicote na mão e bota cano longo.
Uma figura o João Prefeito. Mais recente tem Zé de Coca, que além de não
desgrudar do seu rádio de pilhas gostava de arengar com a estátua de São José,
no alto da matriz.
E Zé Miranda, que vestia uma farda de polícia e se
achava autoridade. Esse eu presenciei algumas vezes tendo a sua fantasia
alimentada por soldados de verdade. Eles davam suas fardas usadas e prestavam
continência ao mesmo. Ele se sentia o máximo.
Tem as irmãs Lurdinha, adultas, que ainda chupam
chupeta, e Luciana, que acha que é afilhada de todo mundo. Pêpa, que fala que
tá rico. Ana do saco, que mesmo idosa anda catando latinha. Tem o Bebe Lavagem,
que se diz secretário do coveiro, e sabe onde fica cada cova e catacumba do
cemitério com seu respectivo “morador”.
Acácio Calistrato, que se zangava ao ser
chamado de “tarado das paredes”, Tonho Babão é o chorão oficial dos enterros da
cidade, e quando tá calmo e medicado faz participações especiais no coral da
igreja. Tem Zé Balão, que anda tangendo gado na maior gritaria, Pescocinho, que
acha que namora com uma tal “Paulinha”, cantora de uma banda de forró, Coréia,
que anda de cacete na mão mendigando, Afonso com sua eterna alegria, tinha
Rapei-lo e Zé da Gaita, que eram doidos de tanta cana no quengo.
O Mário, que só vive desafiando Jesus, Zefa Bife,
que só é doida por dinheiro, Véio, “cabra” bom de recado, e tem também os
ameninados como Robão, Pedro Bufa, o político Luiz de Zé de Lau e Lanzinho, a
inesquecível Tubaína, que se soube morreu em São Paulo...
Esses que eu lembro fizeram e fazem parte do
cotidiano e folclore da nossa terra Capoeiras. Sempre existiram e sempre existirão
em todo lugar, só que nas cidades do interior são parte da História. (Júnior Almeida).
*Na ilustração o Bafo de Bode
Recife onde nasci tinha também suas peculiaridades com os doidos "famosos" tipo "chá preto e pente" que pedia ao meu pai que comprasse o Chá ou um pente e meu pai lhe dava dinheiro mas não comprava nada.Tinha um outro, "lolita" que era homossexual, mas também não era bom da cabeça. Porém de todos tinha um com apelido de "garapa" que a turma da Faculdade de Direito do Recife, irritavam muito ele com esse apelido e depois corriam para dentro da Faculdade. Numa cidade muito grande é difícil você lembrar de doidos que fizeram a alegria de muitos. Esse garapa os acadêmicos de Direito pintavam e bordavam com ele, mais ou menos assim: o primeiro gritava água, o segundo gritava açúcar e o terceiro gritava, é só mexer. O que ele tivesse na mão ele mandava, pedras, paralelepípedos, e outras coisas mais. Nessa época Recife tinha menos de 1 milhão de habitantes, hoje com mais de 2,5 milhões, fica difícil se achar um doido solto. Contudo era divertido, eu morava no bairro da Madalena e estudava no Colégio Marista na Conde da Boa Vista. Bons tempos que não voltam mais.
ResponderExcluirÓtima descrição e exemplo de representação cultural!!
ResponderExcluirParabéns pela disposição e habilidade ao escrever sobre a memória local!
Maravilha! Uma história contada e relembrada com humor!
ResponderExcluirLembro-me de Isaías Costa, o “Zaía”, que chegava na Vila da Maniçoba dizendo que era parente de todos, já o Orestes, ainda hoje tenho uma cicatriz na cabeça de uma pedrada que levei, por chamá-lo de Orestes "Bebão".
ResponderExcluirParabenizo o Autor da matéria por mostrar, por meio desta postagem, a realidade cultural de nossa terra.
Ernande Tavares Calado - São Bento do Una - PE
Muito Bom lembro de um que era ou ainda é... o da Laranja de Defunto(comia todas as laranjas que colocam abaixo do caixão de defunto)...como era mesmo o nome dele?
ResponderExcluirQuem faz isso Márcia, é o "Bebe Lavagem".
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